terça-feira, 5 de maio de 2009

O Primeiro Voo a Gente Nunca Esquece

A língua portuguesa tirou o acento de ‘voo’. Mas do assento do passageiro, na cabine do planador, não foram necessárias palavras. Aboli a gramática. Dispensei a ortografia. Ignorei a lingüística. Nas alturas do céu sem limites, apenas exclamações, interjeições e vários sons guturais ressoaram em uma das experiências mais libertadoras dos últimos tempos...

Voar de planador sempre foi um sonho. E como todo devaneio contido, permaneceu trancafiado e empoeirado por muito tempo no fundo do relicário da alma. Por anos a fio, o desejo de planar seguiu espremido debaixo de pilhas de contas a pagar, ‘falta de tempo’ e inúmeras outras razões de maior e menor importância. Mas ninguém consegue afogar um sonho desses por muito tempo...

Bastou um telefonema e estava confirmada a tão esperada oportunidade para voar, no melhor dia e horário possíveis do feriado. Lá fui eu. Pé na estrada, rumo ao Aeroclube Politécnico de Planadores – o famoso APP - em Jundiaí, para quebrar mais um salto e embarcar em mais uma aventura extraordinária.

A escriba, prestes a embarcar na aventura aérea.

Finalmente, eu vou voar
Adeus São Paulo, trânsito, buzinas e gente de cara feia dentro de carros barulhentos. A estrada estava tranquila e a chegada à sede do aeroclube cunhou meu momento ‘Top Gun’. Sem a moto Ducati, sem a jaqueta de couro e sem o Tom ‘Maverick’ Cruise a tiracolo. Mas com óculos escuros no melhor estilo aviador - o que já é um começo...

O dia estava ótimo para um voo à vela, como também é conhecido o voo em planador. Após uma simpática recepção, algumas explicações foram reforçadas. Difícil de acreditar, mas aparentemente algumas pessoas agendam voos sem saber que o planador é uma aeronave sem motor. Fiquei imaginando o rosto boquiaberto de quem descobre, na última hora, que seu aeroplano será puxado aos ares por um cabo, conectado a um avião rebocador, que levará o planador até uma altura adequada, para só então começar a planar. Ainda bem que não era meu caso... Há tempos acompanho o esporte e conheço a segurança e profissionalismo que envolvem a prática no país. Assim, não houve motivos para pânico ou preocupação. Só aquele friozinho na barriga, típico de quem está prestes a aprontar...

Depois de realizar os trâmites burocráticos e assinar os papéis afirmando que o voo seria de minha total e inteira ‘irresponsabilidade’, segui até a área do aeroporto aonde vários planadores faziam fila para decolar na pista. Simples assim.

Face a face com o planador
“Hummm... É um pouco menor do que eu imaginava...”. Não posso negar que esse foi o primeiro pensamento que passou pela minha cabeça logo que conferi in loco o tamanho do cockpit do planador polonês de dois lugares, onde eu voaria. O modelo Puchacz, que em sua língua-mãe significa ‘coruja macho’, parecia ser um pouco maior pelas fotos da Internet. Aparentemente, esse tipo de engano é comum. Mas o Corujão, como foi apelidado carinhosamente por mim, logo surpreenderia. Afinal de contas, na aviação, assim como na vida, tamanho não é documento. Na hora H, o planador desempenhou maravilhosamente bem em curvas e retas, mostrando-se forte, vigoroso e flexível para manobras digamos, um pouco mais radicais. Enfim, um verdadeiro gigante nos ares, como deveria ser. No final das contas, o espaço interno deu, sobrou e o modelo agradou...

Segurança, em primeiro lugar
A indumentária do voo à vela inclui um paraquedas obrigatório. Antes de embarcar no Corujão, tive que vestir o equipamento, ajustando-o bem. Confesso que adorei. Não apenas porque o aparato era vermelho. Mas porque sempre quis ter a sensação de usar um paraquedas, mesmo sem ter a intenção de acioná-lo. Mochila-fralda, abelha de cócoras, formiga atômica, larva de lagarta. A imagem de quem desfila com um paraquedas nas costas não é das melhores. É impossível ficar sexy e elegante. Mas tudo isso é compensado pelo espírito da aventura... E dá-lhe aventura!

Outro item essencial de segurança – e por que não dizer, de higiene – é o famoso ‘saquinho’ para panes estomacais. Provavelmente, o objeto mais lembrado por alguns passageiros em vôos panorâmicos com muitas curvas...

A decolagem para o sonho
Nos planadores de dois lugares, geralmente usados para instrução e voos panorâmicos, o passageiro vai sentado à frente e o piloto atrás. Sem motor, o Corujão foi empurrado para a pista por alguns pilotos experientes, pilotos alunos e até instrutores. Independente de funções ou hierarquias, o espírito colaborativo prevalece na pista e fora dela. E essa também é uma das belezas do voo em planador...

Cabo para o reboque engatado. Tudo pronto para decolar. O avião rebocador partiu na frente, imprimindo a velocidade para a decolagem. E nem foi preciso percorrer os 1300 metros de pista para começar a voar. O aeroplano descolou do solo primeiro, quando a velocidade atingiu cerca de 80 km/hora. Em seguida, o rebocador alçou voo e fomos puxados aos céus. Literalmente.

A quantidade de instrumentos no painel de controle assusta qualquer leigo. Mas não foi difícil de reconhecer o altímetro, onde foi possível acompanhar a subida, segundo a segundo. Foi incrível perceber a sustentação da aeronave no ar, enquanto ela ganhava cada vez mais velocidade e altura. Para o alto e avante! Lá fomos nós...


Um parque de diversões a céu aberto
Vista de cima, a verdejante Serra do Japi contrastava com a imagem da cidade de Jundiaí ao fundo e suas fábricas espaçosas. Ao chegar a mais ou menos 600 metros do solo (o equivalente a 20 prédios de 15 andares, empilhados), o rebocador desengatou o cabo por onde puxava o planador, cortando o cordão umbilical e parindo o Corujão para o voo planado.

O som do planador cortando o ar foi relaxante e muito próximo do silêncio. Uma sensação de paz tomou conta de cada célula do meu corpo. Nem me incomodei com a sauna grátis que o voo proporcionava. Tudo seguia na maior calma, até o piloto perguntar se eu queria pilotar um pouquinho. Óbvio que sim!!! Segurar o manche e controlar os pedais no voo por alguns segundos foi uma sensação inimaginável... E a diversão não parou por aí. Uma montanha russa, um golfinho e duas reversões fizeram parte do cardápio. Tive direito a algumas manobras mais radicais, o que deixou meu primeiro voo à vela ainda mais especial. Muito melhor do que parque de diversões. Mesmo.

Com doses cavalares de endorfina e adrenalina na veia, entrei em puro estado de êxtase. Soaria simplista da minha parte tentar descrever aqui o que vivi. Mas posso dizer que comprovei ser detentora de um estômago de avestruz: o fatídico saquinho para emergências estomacais permaneceu intacto, mesmo diante das pirotecnias aéreas...

Sua majestade, o urubu
Nem águia, nem gaivota. O coadjuvante do show aéreo foi o urubu. O injustiçado pássaro, usualmente associado à carniça e putrefação, cumpre uma nobre função para os pilotos de planador: é ele quem dá dicas de onde estão as térmicas – correntes de ar quente que permitem ao planador ganhar altura e prolongar o tempo de permanência no ar. Salve, salve, urubu!

Pouso de mestre
O tempo de voo se aproximava do fim e chegava a hora de deixar os ares. Por mim, teria continuado a voar mais e mais e mais...

O pouso suave e primoroso do piloto arrancou aplausos desta escriba. Bem diferente das inúmeras aterrissagens no estilo ‘barrigada’ dos aviões comerciais na pista de Congonhas. O planador imprime um maior nível de sutileza e sensibilidade para o voo. Isso tudo, somado à maestria na pilotagem, resultaram em um espetáculo a bordo...

O saldo final da aventura
Trinta minutos de voo em planador equivaleram ao efeito de três horas ininterruptas de meditação. Sem escalas. Entrei em alfa, pirei na batatinha, chapei o coco. Chamem isso do que quiserem. Esse tipo de sensação é impossível de explicar...

Já faz mais de 24 horas que voei e ainda estou com a impressão de flutuar no etéreo. Passei o dia todo com vontade de esticar os braços, em posição de decolagem, como se meus músculos fossem de fibra de vidro e poliuretano, em formato de asa. Não preciso dizer que fiquei fascinada pela prática. Fui inoculada pelo aerococos...

Agora, só me resta esperar pelo próximo voo...
Maria Rita Barbi sorriu feliz da cabine do planador e escreve no 'Quebrando o Salto' geralmente às segundas-feiras. 

Texto gentilmente cedido pela autora !